Salve-se quem puder #20 - Carta de alguém que ainda acredita na próxima edição

Ninguém mais escreve cartas. Talvez, justamente por isso, elas ainda façam sentido. Escrever uma carta exige tempo, dedicação e uma pitada de ingenuidade. Uma crença quase infantil de que alguém, em algum momento, vai parar tudo para ler.

SALVE-SE QUEM PUDER

Sunça

12/11/20252 min read

*Carta enviada ao “Ministério dos Quadrinhos” | 11/12/2025

Alê,

Ninguém mais escreve cartas.

Talvez, justamente por isso, elas ainda façam sentido. Escrever uma carta exige tempo, dedicação e uma pitada de ingenuidade. Uma crença quase infantil de que alguém, em algum momento, vai parar tudo para ler. A correspondência não vai bem, nossa caixa de email não é lida, o SMS caiu em desuso e tudo no WhatsApp é afoito demais, não dá nem para fingir que pensamos antes de apertar “enviar”. Fiquei muito feliz com a oportunidade que o Ministério dos Quadrinhos me deu de compartilhar pensamentos em texto, assim como os primatas faziam antes de tudo, e qualquer coisa, virar vídeo de TikTok.

Estou imerso nas aventuras da Turma do Pererê. Ziraldo em estado puro, um suco concentrado de brasilidade, daqueles que mancham o bigode e deixam gosto de memória boa. É curioso como aquele Brasil continua ali, intacto, esperando apenas uma reedição decente para nos lembrar que já fomos mais leves, mais inventivos e, quem sabe, mais otimistas. Alguma editora deveria assumir essa responsabilidade histórica e republicar isso urgentemente, seja por dever cívico, seja pela simples alegria de ver o Saci circulando de novo.

Fico feliz de escrever algo que alguém vai ler, isso virou artigo de luxo. Porque, sejamos francos, ninguém lê mais nada. A gente desliza, pula, ignora, curte sem ver e opina sem saber exatamente sobre o quê está opinando. Hoje em dia, escrever um texto é um gesto quixotesco, como lançar uma garrafa ao mar sem saber se ainda existem praias ou leitores. Hoje, atenção e tempo são coisas raras. Assim como você, sigo na luta por um tempinho para iniciar a leitura integral do Dom Quixote de la Mancha do Cervantes.

Confesso que agora, com uma nova edição dos Smurfs (do Peyo) nas mãos, a promessa de um Groo (do Aragonés) novinho em folha, Transformers (do Daniel Warren Johnson), mais de Marc-Antoine Mathieu, edição histórica de Popeye (do E. C. Segar), a promessa de A Turma do Arrepio 2 (do Cesar Sandoval) e o recomeço do número da revista do Homem-Aranha, sinto algo perigosamente próximo de esperança. É como se o mundo dissesse: “calma, nem tudo acabou, ainda tem boas histórias a caminho”. Fica a sensação de que talvez, e só talvez, não esteja tudo perdido.

Provavelmente é ingenuidade minha acreditar que isso sinaliza um futuro melhor no Brasil e no mundo. Mas essa ingenuidade tem algo de bonito: ela não nega a bagunça do presente, apenas escolhe acreditar que a próxima edição pode ser melhor.

Com a nova seção de cartas do Ministério dos Quadrinhos, esse incentivo subversivo à escrita e à leitura, fica a sensação de que ainda vale conversar com calma, formular frases longas, discordar sem gritar e esperar resposta sem cobrança. Se isso não melhora o mundo, ao menos melhora o ano.

Sigo, portanto, ingenuamente confiante. Acreditando que, se ainda escrevemos cartas e ainda lemos quadrinhos, talvez 2026 possa ser um pouco melhor. Que venha um ano novo mais ilustrado, melhor roteirizado e impresso em bom papel.

Abraço

Sunça

Obs. Algumas ingenuidades são formas elegantes de resistência.