

Sinopse:
Tel só queria sobreviver à ressaca e chegar vivo no trabalho. Mas o encontro com um Fusca vermelho vira sua vida de cabeça para baixo. De repente, ele, o vira-lata caramelo Salsicha e a caçadora Nessa se veem no meio de uma guerra secreta contra os Fuscas. Não os carros simpáticos que todos conhecem, mas criaturas autoritárias que há séculos manipulam a humanidade.
Com humor ácido, mineiridade e muito nonsense, Eu Mato Fuscas transforma o absurdo em aventura. É como se Douglas Adams tivesse nascido em BH e decidido escrever entre um pão de queijo e outro. (Obs. É importante ressaltar que isso foi escrito pelo próprio Sunça.)
Eu Mato Fuscas
Futuro livro do Sunça. É publicado como uma série literária.
Fichamento
(Cuidado! Essa análise certamente contém spoilers)
Eu Mato Fuscas, escrito por Sunça, é um romance que mistura comédia absurda, crítica social e aventura fantástica em uma narrativa mineira e universal em seus questionamentos. A obra é uma epopeia cósmica, repleta de ironia, filosofia de boteco e situações tão surreais que chegam a ser, paradoxalmente, familiares para qualquer leitor.
Tel não queria salvar o mundo. Ele só queria acordar sem ressaca, tomar um banho decente e chegar no trabalho sem precisar mentir para a chefe. Mas o encontro com um Fusca vermelho muda tudo. De repente, o publicitário preguiçoso e descrente se vê perseguido por carros com vida própria, arrastado para uma guerra secreta contra seres metálicos que há décadas manipulam a história da humanidade.
Tel não está sozinho nessa jornada. Ele conta com a presença fiel de Salsicha, um vira-lata caramelo que funciona como contraponto cômico, sensível e animal de sua existência. Mais tarde, surge Nessa, uma caçadora de Fuscas, herdeira de uma tradição familiar de resistência contra esses opressores metálicos. Juntos, os três embarcam em uma aventura que combina perseguições automobilísticas, encontros improváveis e revelações sobre a natureza do mundo e sobre a própria insignificância da vida diante do universo.
A trama se estrutura como um road movie urbano e mineiro, em que Belo Horizonte se transforma em palco para eventos cósmicos, grotescos e hilários. Locais como a Praça Sete, a Lagoa da Pampulha, o Parque Guanabara e botecos tradicionais da capital mineira são reimaginados como cenários de uma guerra secreta. O contraste entre a monumentalidade da batalha contra seres cósmicos e a prosaica vida urbana mineira é uma das marcas do livro. Assim, o romance dialoga tanto com a tradição da crônica mineira, que enxerga o extraordinário no cotidiano, quanto com a literatura fantástica que faz do absurdo uma lente crítica da realidade.
Personagens e simbologia
Tel é um protagonista relutante. Publicitário, mineiro comum, sobrevivente de tragédias pessoais e portador de uma ironia autodefensiva, ele representa o sujeito urbano contemporâneo, atolado em frustrações, vícios e repetições banais. Sua trajetória remete a uma clássica jornada do herói, mas sempre sabotada pelo humor ácido e pelo destino absurdo. Ao contrário dos protagonistas heroicos de histórias de fantasia, Tel é guiado mais pela ressaca e pela confusão do que por coragem ou ideais.
Salsicha, o vira-lata caramelo, é mais do que um alívio cômico. Ele condensa tanto a figura universal do cão fiel quanto o arquétipo mineiro da simplicidade resistente. Em meio a tragédias e filosofias sobre a insignificância da existência, é Salsicha quem ancora Tel no mundo concreto. Sua presença, ora ridícula, ora terna, aponta para a ironia fundamental da narrativa: às vezes, é apenas o cachorro que importa.
Nessa encarna o arquétipo da caçadora. Forte, direta, herdeira de uma tradição familiar de combate aos Fuscas, é também uma figura marcada pela dor da perda, órfã de pai e mãe por ação desses seres sobrenaturais. Ao mesmo tempo, carrega trejeitos que a conectam ao universo jovem urbano: sua arma é um ioiô, e sua atitude mescla dureza com ironia. Nessa dá à narrativa uma dimensão de resistência coletiva, lembrando que há outros que, ao longo da história, tentaram enfrentar os Fuscas.
Os Fuscas são o elemento mais original da obra. Não são apenas carros: são entidades opressoras, símbolos da repetição, do autoritarismo, da massificação cultural e da violência disfarçada sob a aparência inofensiva. Transformar o Fusca, ícone da cultura brasileira, do cinema e da vida urbana, em vilão é um gesto de sátira e subversão. O Fusca deixa de ser símbolo de nostalgia e vira alegoria da opressão banalizada, daquilo que se naturaliza no cotidiano até se tornar invisível.
Temas centrais
Um dos temas que atravessam a obra é o absurdo da existência. O narrador frequentemente interrompe a narrativa para refletir, em tom filosófico e debochado, sobre a insignificância da vida diante do universo. Essas reflexões, que lembram Douglas Adams em O Guia do Mochileiro das Galáxias e Terry Pratchett em Discworld, são marcadas por humor ácido e descrença diante de qualquer promessa de sentido maior.
Outro tema é a crítica social. Os Fuscas são apresentados como responsáveis por opressões históricas: impérios, escravidão, consumismo, franquias de fast food, manipulação cultural. A sátira não é apenas contra o carro em si, mas contra tudo o que ele simboliza de alienação, conformismo e violência disfarçada. Nesse sentido, a narrativa dialoga com Millôr Fernandes e Henfil, ao usar o humor como ferramenta política e crítica.
A mineiridade também é central. O livro se passa em Belo Horizonte e em outros pontos de Minas Gerais, explorando com carinho e deboche as paisagens, os botecos, as praças, os times de futebol e até os símbolos turísticos. O contraste entre o épico e o provinciano, entre a guerra cósmica e o pão de queijo, reforça a comicidade da narrativa. É como se o universo todo se resumisse à mesa de bar mineira, e dela pudessem emergir tanto a revelação do absurdo da vida quanto o início de uma revolução contra os Fuscas.
A obra também problematiza o heroísmo. Tel não quer ser herói, não tem preparo, não entende seu papel. Nessa carrega a tradição, mas sabe que a luta está em vias de extinção. E os Fuscas parecem sempre um passo à frente. Essa inversão da lógica heroica aproxima o livro do anti-herói moderno, ao mesmo tempo em que ironiza a própria estrutura da jornada épica.
Estilo narrativo
O estilo de Sunça em Eu Mato Fuscas mistura diferentes registros. Há momentos de prosa literária refinada, com descrições poéticas e reflexões existenciais, e momentos de humor escrachado, quase pastelão, com vômitos, topadas em quinas e piadas de boteco. Esse trânsito entre o filosófico e o chulo, entre o épico e o trivial, cria um tom único, que faz rir enquanto provoca incômodo.
O narrador é constantemente irônico, consciente de sua função e próximo do leitor. Há digressões que lembram o humor britânico de Monty Python e Douglas Adams, mas com sotaque mineiro e pitadas de crítica social que remetem a Henfil, Millôr Fernandes e à tradição das charges políticas. A presença do absurdo cotidiano, como a briga por uma salada no boteco ou a perseguição de vacas, cria uma textura narrativa que dialoga tanto com a literatura fantástica quanto com a crônica brasileira.
Comparações e referências
A obra pode ser aproximada de autores como:
Douglas Adams (O Guia do Mochileiro das Galáxias), pela maneira como trata o universo e a vida humana como insignificantes, com humor e ironia.
Terry Pratchett, pela construção de um universo em que o absurdo e o fantástico revelam verdades sociais.
Monty Python, pela lógica do nonsense, das situações extremas que se resolvem em gargalhadas.
Henfil e Millôr Fernandes, pela crítica social feita com humor ácido, pela ironia diante da política e do cotidiano brasileiro.
Literatura mineira (Fernando Sabino, Otto Lara Resende, mas num registro paródico), pela ambientação em Belo Horizonte e pela valorização do trivial.
Entretanto, Eu Mato Fuscas mantém um caráter próprio e singular: é uma narrativa que não tenta imitar, mas dialoga com essas tradições, acrescentando a elas um sotaque, um ritmo e uma ambientação profundamente mineira.
Conflito e progressão narrativa
Ao longo do livro, Tel descobre que sua vida banal está ligada a uma guerra maior. Desde a infância, quando “matava fuscas” na brincadeira de viagem, até o presente, em que os Fuscas perseguem sua existência, há uma linha que conecta destino pessoal e conflito cósmico. O reencontro com Nessa, o contato com outros caçadores e a perseguição constante dos Fuscas estruturam a narrativa em uma escalada de absurdos.
Cada capítulo coloca Tel diante de uma nova revelação: sua família não morreu por acaso, Nessa também perdeu os pais para os Fuscas, e Belo Horizonte é palco de batalhas que os “jacus” (humanos comuns) não percebem. Enquanto isso, a vida banal insiste em atravessar a jornada: o chuveiro que não funciona, a ressaca interminável, o cachorro que mija no carro, o pão de queijo irresistível. O épico e o cotidiano se embaralham, e é nessa mistura que o humor ganha força.
Importância da obra
Eu Mato Fuscas se destaca no cenário da literatura contemporânea brasileira por unir gêneros de maneira pouco convencional: a ficção absurda, a sátira social, o humor de boteco e a narrativa fantástica. O resultado é uma obra que diverte, provoca e desafia expectativas.
A leitura pode ser feita em várias camadas. Para alguns, é apenas uma aventura nonsense, com carros falantes e caçadores excêntricos. Para outros, é uma sátira sobre a vida urbana, sobre o trabalho criativo precarizado, sobre a alienação social. Para outros ainda, é uma reflexão filosófica sobre o vazio da existência. Essa multiplicidade de camadas é um dos grandes trunfos do livro.
Sunça cria uma epopeia mineira contra carros autoritários que, no fundo, é uma sátira sobre a vida contemporânea. Entre vacas, pão de queijo, ressacas e Fuscas assassinos, o livro faz rir e pensar, provocando no leitor a dúvida fundamental: e se tudo isso for apenas mais uma coincidência?


